György Lukács (1885-1971)
Georg Lichtheim disse certa vez que "os estudos críticos sobre escritores importantes começam com um breve esboço biográfico e depois se concentram na análise de sua obra. Qualquer um que tente seguir esse procedimento em relação a Lukács estará fadado a reconhecer que o mérito é falho. A vida particular, mesmo do mais enclausurado erudito não pode ser totalmente dissociada de seu perfil público, e, quando o autor em questão gastou meio século a serviço de uma causa revolucionária, é evidente que a distinção entre ‘vida’ e ‘pensamento’ se torna insustentável”. Pois bem, é esse o dilema dessa proposta biográfica que, apesar de ter pretensão de ser informativa, conhece de antemão seus limites e as lacunas que, com certeza, deixará abertas. Seguiremos, portanto, uma linha pouco comprometedora e apontaremos tão-somente algumas das passagens mais significativas.
G. Lukács nasce em Budapeste, no dia 13 de abril de 1885. Segundo filho de Adél Wertheimer e Jozséf Lukács, próspero dirigente da principal instituição bancária da Hungria, o Budapest Kreditanstalt, desde muito jovem Lukács manifesta a tragédia íntima de recusar, forte e decididamente, seu próprio universo burguês. Em vez dos negócios, dedica-se ao estudo das artes e da literatura, revelando um talento notável para a crítica. A dramaturgia de Ibsen e Hauptmann e, particularmente, a poesia do conterrâneo Endre Andy causam-lhe impacto e influenciam-lhe os primeiros escritos – algumas peças publicadas na imprensa local. É desse período de sua vida, mais precisamente 1902, que Lukács inicia uma longa série de trabalhos publicados em periódicos progressistas, na condição de colaborador e, em alguns casos, como fundador. A título de exemplo, destacam-se Século XX (Huszadik Szádad, 1906),Ocidente (Nyugat, 1908), Espírito (Szelem, 1911, fundador), Virada à Esquerda (Die Linkskurve, 1931-33), órgão teórico de Federação de Escritores Proletários Revolucionários do PC Alemão, Literatura Internacional (Internationale Literatur, 1933-34), A Palavra (Das Wort, 1933), órgão da emigração alemã, A Nova Voz (Uj Hang, 1933-34), órgão da emigração húngara, Crítica Literária (Literatourny Kritik, 1933-34), Forum (1946, fundador), Tomada de Consciência(Eszmélet, 1956, fundador com Tibor Déry, Gyula Illés e István Mészáros). É em 1902 também que ingressa no curso de Jurisprudência da Universidade de Budapest, doutorando-se em Leis em 1906 e Filosofia em 1909.
Entusiasmado com a Revolução de Outubro e com o estímulo de E. Szabó, começa a ler Marx, Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek e Sorel. Em 2 de dezembro de 1918 ingressa no Partido Comunista da Hungria, iniciando aí sua longa e atribulada trajetória política inscrita na prática e na teoria revolucionária que haveria de desenvolver.
O mês de março de 1919 acolhe a proclamação da República Soviética da Hungria, liderada por Bela Kun; Lukács é designado vice-comissário do Povo para a Cultura e a Educação Popular, função que desempenha com muita eficiência. Em agosto, porém, as tropas fascistas de Horthy massacram os integrantes da República Soviética e obrigam o PC a atuar na clandestinidade. No exílio em Viena, Lukács é preso e condenado à morte por Horthy. Uma ampla mobilização de intelectuais alemães, formada, entre outros, por P. Ersnt, Heinrich e Thomas Mann, impede sua extradição. Livre da condenação, mas ainda no exílio, Lukács prepara os originais de História e consciência de classe, publicado em 1923. HCC vem a ser um de seus livros mais polêmicos e obra de filosofia marxista das mais significativas e lidas do século XX, servindo de referência e inspiração para Adorno e Benjamin, Mannheim, Sartre, Merleau-Ponty e Goldmann. Nele se inscrevem os preâmbulos de seu marxismo crítico, ancorado, nessa época, mais na Fenomenologia do Espírito de Hegel do que propriamente em Marx.
Mergulhado nos estudos marxianos e preocupado, sobretudo, com o materialismo, logo a seguir publica o estudo crítico “N. Bukarin: teoria do materialismo histórico” (1925), “Moses Hess e o problema da dialética idealista” (1927) e “O impacto da Revolução de Outubro no Leste” (1927).
As Teses de Blum (1928), publicadas sob pseudônimo quando Lukács vivia na clandestinidade, foram escritas por ocasião do II Congresso do PC hungáro, realizado em 1929, e constitui sua primeira análise política concreta da situação conjuntural. Derrotadas as teses, ea ameaçado de expulsão pelo partido, Lukács afasta-se da política partidária; mas a ideia central desse importante texto – a defesa de uma “ditadura democrática do proletariado e do campesinato” – e da ruptura com o isolamento da classe operária, alçada à condição de herdeira da melhor tradição da humanidade e não meramente retratada como criatura da nova cultura operária – seria recorrente na obra futura do filósofo húngaro.
Em 1930, segue para Moscou, onde passa a trabalhar no Instituto Marx-Engels; ali, Lukács, teria a oportunidade de aprofundar seus estudos marxianos e de superar as “vacilações e o idealismo político” de HCC, baseado na leitura dos originais dos Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844 e dos Cadernos de Lenin. Resultado imediato desses estudos é o ensaio “Da necessidade, uma virtude”, esboço crítico a HCC, e a publicação do ensaio autobiográfico “Meu caminho para Marx”, ambos de 1933. Em 1940, conclui a bela e densa obra O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, com o qual obtém o título de doutor em Ciências Filosóficas pela Academia de Ciência da União Soviética. Em 1944, publica “A responsabilidade dos intelectuais”, reunião de alguns ensaios escritos entre 1939 e 1941.
Os estudos que Lukács consagra, já no campo marxiano, à estética e aos princípios humanizadores da atividade artística e literária constituíram o ponto alto de sua produção nos anos 1930 e nas décadas de 1940 e 1950. São eles que o ajudam a tergiversar a brutalidade do terreno puro da política e a tensa relação que passa a estabelecer com as orientações partidárias. Uma preocupações permanente é a concepção do realismo crítico, claramente apartada da estética oficial do stalinismo – o realismo socialista. Datam dessa época, e dessa preocupação, os ensaios “Lenin e os problemas da cultura”, “Grandes realistas russos”, “Goethe e sua época”, todos de 1946; em 1947, publica “Literatura e democracia”, “A crise da filosofia burguesa” e “Esboço de uma estética marxista”. Em 1948, vêm à luz “Por uma nova cultura magiar” e “Problemas de realismo”, “Existencialismo ou marxismo?”, “Ensaio sobre realismo”, “Reviravolta do destino” e “Karl Marx e Friedrich Engels como historiadores da literatura”.
Condenado pelas ideias contidas em “Literatura e democracia” e “Por uma nova cultura magiar”, abre-se a “questão Lukács”, pela qual é acusado interna e internacionalmente vomo epíteto de “reformista” e “caluniador de Lenin”. Retira-se da vida pública e intensifica seus estudos estéticos publicando “Realistas alemães do século XIX” (1951), “Balzac e o realismo francês” (1952).”Breve história da literatura alemã” e “Contribuições à história da estética, de 1953. Em 1954, publica A destruição da razão, obra na qual imprime a ideia de que “nenhuma ideologia é inocente”; o critério de sua avaliação do “caminho seguida pela Alemanha para chegar a Hitler, no campo da filosofia”, é a postura favorável ou não à Razão, procedimento que balizaria a crítica que faz do irracionalismo de Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey, Simmel, Scheller, Heidegger, Jasper, Weber, entre outros.
Em 1955, publica “Problemas de realismo” e, em 1956, reaproxima-se das atividades políticas, utilizando-se do espaço aberto ao debate pelo Círculo Petöfi para reivindicar uma mais ampla abertura democrática. Nomeado ministro da Cultura, Lukács logo se vê impedido de realizar seus projetos concretos em razão da invasão das tropas soviéticas na Hungria; é deportado para a Romênia e, na volta à Hungria (1957), perde a cátedra que ocupara na Universidade de Budapeste e é expulso do PC.
Nesse mesmo ano, saem na Itália as traduções de seus livros Realismo crítico hoje e Introdução a uma estética marxista. Em 1962, começam a ser publicados, em alemão, as Obras completas de GL e na revista Nuovo Argumenti sai sua “Carta ao stalinismo”. Em 1963, é publicada, em alemão, a Estética I: a peculiaridade do estético; em 1964, publica o ensaio “Problemas da coexistência cultural”; em 1965, O jovem Marx e, em 1967, Conversando com Lukács, uma série de entrevistas concedidas a L. Kofler, W. Abendroth e H. H. Holz.
A década de 1960 foi das mais fecundas do filósofo húngaro. Após a publicação Estética, e apesar da idade avançada, traçou um programa de trabalho para os dez anos seguintes centrado na elaboração de uma Ética marxista. As investigações preliminares sobre os fundamentos dos valores na práxis humana resultaram na redação de sua Ontologia do ser social, seguido dos Prolegômenos à ontologia do ser social. É do inicio dessa década sua descoberta da “bela palavra ontologia”. Com a invasão da Tchecoslováquia de 1968 pelo Pacto de Varsóvia, Lukács redigiu um polêmico opúsculo pela “democratização do socialismo”. Um pouco antes, redigira o Prefácio à nova edição de História e consciência de classe. Em ambos os textos há considerações sobre política e método que ainda esperam comparação cuidadosa com o texto da Ontologia. São do final dessa década, também, os primeiros movimentos de abandono do marxismo por parte de seus discípulos mais conhecidos, entre eles Agnes Heller, Ferenc Feher e Mihail Vadja. O ponto de partida é um texto de recusa da Ontologia (publicado pela primeira vez na revista Aut-Aut em 1977, sob o título “Annotazione sull’Ontologia per il compagno Lukács”) no qual fazem duras críticas às investigações ontológicas de Lukács. Guido Oldrini e Nicolas Tertulian foram os principais autores a demonstrar que todas essas críticas, sem exceção, resultavam de incompreensão e má-fé para com o texto lukacsiano.
Do ponto de vista pessoal, a década é marcada pelo falecimento de sua esposa, Gertrud Bortstieber, um duro golpe para o pensador alemão, e pela deterioração de suas condições de sáude, culminando com um câncer de pulmão que o vitimaria em 4 de julho de 1971. Foi em suas últimas semanas, quando já não mais conseguia trabalhar na Ontologia, que seus discípulos, seguindo um esboço autobiográfico do próprio Lukács, fizeram a comovente entrevista publicada com o título de Pensamento vivido.
Georg Lukács: uma breve biografia. In: PINASSI, Maria Orlanda; LESSA, Sérgio (Orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.